sexta-feira, 1 de abril de 2016

A INTUIÇÃO BERGSONIANA ENTRE FILOSOFIA E ESPIRITUALIDADE

Hildegard von Bingen- O vis aeternitatis-- O vis aeternitatis- 9 min.

Hildegard von Bingen- 
O vis aeternitatis- Cantides of Ectasy sequantia- Chants de l'extase -73 min.


Henri Bergson

A intuição Bergsoniana entre
filosofia e espiritualidade

Catarina Rochamonte

O tempo real ou a duração, que nem a ciência nem a metafísica teriam conseguido
efetivamente pensar, surge como um objeto concreto para o qual
Bergson buscará um método adequado. O tempo com o qual a ciência lida
é apenas uma variável obtida através da relação com o espaço percorrido, enquanto
o tempo na filosofia aparece como algo dado de ordinário através do entendimento
ou da sensibilidade. Para Bergson, entretanto, o tempo que conhecemos
não é o tempo no qual conhecemos, o tempo real, chamado por ele de duração. A
esse tempo real teríamos acesso apenas interiormente por meio de uma intuição.
Não que a duração se dê à consciência através da intuição, como se houvesse aí um
clara distinção entre objeto, sujeito e método; antes a consciência - na integridade,
no movimento e na qualidade que lhe são inerentes - é a própria duração e a intui-
ção é a consciência tentando abarcar a si mesma.

 Na medida em que a consciência,
para Bergson, ultrapassa o domínio da inteligência, a intuição de que é capaz não
se limita a uma relação cognitiva entre sujeito e objeto, mas impõe ao indivíduo
uma experiência que envolve a totalidade da sua personalidade e que o transforma.
Nesse sentido, gostaríamos de sugerir que o aprofundamento da concepção
bergsoniana da duração, assim como do método capaz de apreendê-la, reduz cada
vez mais a tênue barreira que separa filosofia e espiritualidade; redução essa que
se torna patente na última obra de Bergson, As duas fontes da moral e da religião,
onde a experiência mística é concebida como relação supra-teórica, não-cognitiva,
fruitiva, pessoal, passional, transformadora e, de certo modo, incomunicável, do
sujeito com a verdade.

A intuição se reveste, no pensamento de Bergson, de um caráter positivo,
factual, isto é, de uma experiência efetivamente válida para o conhecimento meta-
físico. Trata-se de uma espécie de temporalização do cogito, de um cogito desprovido
de substância e deslocado do presente para um passado que nele pulsa. Em
Introdução à metafísica, essa intuição é apresentada como uma forma de conhecimento
interior e absoluto, em contraposição à análise que seria uma forma de
conhecimento exterior e relativo. Na análise, o conhecimento de um objeto é a sua
remissão a algo que não é ele mesmo, uma explicação em função de algo, intermediada
pela perspectiva do observador e pelo seu simbolismo linguístico. Na intui-
ção, a apreensão é imediata, não há intermédios. A intuição seria o instinto tornado
desinteressado e consciente de si ou a inteligência contrariando a sua inclinação
natural no esforço para incidir sobre aquilo que não lhe convém. Mas a intuição é
também um método, cabendo à filosofia fazer migrar a intuição da duração do seu
devir silencioso, articulando, de algum modo, esse conhecimento interno com os
dados fornecidos pela ciência e com a dialética conceitual.

Como o tempo para Agostinho, cuja compreensibilidade lhe foge se lhe reclamam
uma explicação , a duração que somos e na qual estamos é uma instância
arredia a qualquer tentativa de demonstração ou determinação. Sabemos o que
ela é, mas o sabemos quase instintivamente, sendo o entrecruzamento entre as
fontes interna e externa de nosso conhecimento o início da reflexão filosófica, de
seu discurso e de seu método, cuja dificuldade estaria menos no ponto de partida
imediato, que na extensão desse conhecimento imediato para o restante do mundo.
Essa extensão seria possível, para Bergson, através de uma simpatia , isto é, de
um ato simples a partir do qual o indivíduo se identifica com o objeto, coincidindo
com aquilo que ele tem de único e inexprimível.

 Enquanto a inteligência opera sobre a matéria e especula sobre e a partir de conceitos, a intuição opera sobretudo como simpatia, como coincidência do sujeito com o objeto, em uma relação que antecede ou mesmo fundamenta, torna possível o conhecimento (em seu sentido
tradicional, que pressupõe a oposição sujeito/objeto). Sem abrir mão do sentido
epistemológico requerido pela intuição, esse conceito de simpatia guarda ainda
um sentido ético e estético.

A intuição seria um contato com a realidade anterior ao pensamento; uma
experiência que não é mera sensação, nem pura reflexão, mas algo que precisaria
ser pensado a partir da concepção bergsoniana da emoção. Não a mera agita-
ção sensível que sucede uma representação, mas a vontade que a antecede, como
o sentimento que impulsiona a criação do artista ou a compaixão que impele os
grandes homens à caridade. Nesse sentido, a intuição pode ser tida por um tipo
especial de “conhecimento” do qual são capazes algumas individualidades privilegiadas.
Como resultado da intensificação de um conhecimento interno distinto
do conhecimento pragmático próprio da inteligência, ou seja, como resultado de
uma intensificação da intuição, teríamos a compaixão e a caridade, cuja explicação
metafísica remeteria ao contato com a fonte do Élan Vital.

1 “si nemo ex me quaerat, scio; si quaerenti explicare uelium, nescio”
A intuição Bergsoniana entre filosofia e espiritualidade 89
Mas ao tomar por ponto de partida a eliminação da mediação do conhecimento,
o filósofo tem que lidar com as dificuldades de uma simpatia/analogia ou
extensão desse conhecimento imediato para as outras coisas ou seres e com a possibilidade
ou impossibilidade de expressão conceitual desse saber que parece ser
de ordem prática e não teórica. A ausência de uma separação real entre o eu e o
mundo e a consequente ausência de distinção entre sujeito e objeto, não sendo um
dado da experiência ordinária nem algo a que se chegue por mera reflexão, impõe
ao filósofo a sua consideração através da óptica do artista ou do místico, o que
levanta a questão da legitimidade da interpretação do filósofo acerca de uma experiência
que ele mesmo não vivencia. Essa questão se mostra bastante relevante
quando aplicada ao pensamento do filósofo em questão, para quem a experiência
mística é reveladora de uma verdade metafísica.

A intuição bergsoniana parece pressupor um rompimento com aquilo que
tradicionalmente caracterizou o pensamento filosófico ocidental, a saber, o dualismo.
Para além das inúmeras nuances e dificuldades envolvidas nessa questão, importa-nos
notar que o elemento metafísico, na medida em que não se deixa apreender
reflexivamente dentro da dicotomia sujeito/objeto, envolve o pensamento de
Bergson numa intersecção entre teoria e prática ou entre filosofia e espiritualidade.
A noção de uma experiência imediata, interior e pré-reflexiva da qual a metafísica
deve partir aproxima o filósofo de uma espiritualidade da qual se distancia pelas
exigências teóricas do próprio discurso. Se a intuição da duração carrega consigo
um germe de espiritualidade, sua extensão em método de pesquisa põe a filosofia
novamente no campo da especulação racional. A expressão da intuição vem acompanhada
de elementos conceituais que lhe são estranhos e o esforço de abstração
equivale paradoxalmente à construção de um método cuja complexidade parece
tornar distante a intuição na sua simplicidade original. O esforço de compreensão,
expressão e articulação teórica da intuição inviabilizaria, pois, a própria experiência
intuitiva cujo aprofundamento levaria a um saber de ordem moral e não teórica.
A experiência religiosa, mais especificamente a experiência mística, despontaria
então como a experiência metafísica que o filósofo sugeriu, mas não alcançou; interpretou,
mas não viveu.

O importante papel atribuído por Bergson à experiência mística em sua última
obra relaciona-se à sua lucidez quanto à radical impossibilidade de assimila-
ção do elemento metafísico através de um conceito, ou seja, liga-se à tese de que
as representações filosóficas só apresentam simbolicamente aquilo que puseram
como fundamento no interior de suas teorias. Se a filosofia bergsoniana abarca de
alguma forma uma genealogia da racionalidade, se remete a percepção consciente
e a própria linguagem à sociabilidade e à ação necessárias à sobrevivência de um
organismo, então a ‘verdade’ desta filosofia não pode ser simplesmente um objeto
da razão, um conceito, uma ideia. Uma metafísica com tais pressupostos requer um
tipo especial de experiência, de consciência, de indivíduo. A experiência mística
evidenciaria então uma realidade psicológica distinta da consciência pragmática e 
90 Catarina Rochamonte

da consciência reflexiva ou especulativa, assim como o modo de vida místico atestaria
uma conduta contraditória e quase paradoxal, se comparada à ação do indiví-
duo preocupado em garantir a própria sobrevivência.

A consideração dos fatos biológicos conduzira Bergson à concepção do Élan
vital e de uma evolução criadora, permanecendo entretanto sem resposta questões
acerca da origem, do princípio e da auto-suficiência desse elã, assim como do sentido
de suas manifestações. Os fatos biológicos considerados n’ A Evolução Criadora
não ofereceram essa resposta, mas indicaram o caminho para se chegar até ela. A
resposta deveria vir das potencialidades intuitivas, do despertar, no homem, do
outro modo de conhecimento no qual a energia lançada através da matéria se dividira.

Em A Evolução Criadora, Bergson apresenta o alcance filosófico da intuição,
ancora a possibilidade desta forma de conhecimento na sua metafísica da vida,
mas encontra também os limites para a apreensão da duração que permanece ainda
indireta, dada apenas através de uma analogia/simpatia entre o sentimento de
existência em nós e a duração das coisas. Haveria, entretanto, a possibilidade de
uma experiência direta da duração através da experiência mística. Nesse sentido, a
intuição mística pode ser lida como um prolongamento possível da intuição filosó-
fica. De fato, ambas têm em comum a imediatidade, a interioridade, a simplicidade,
a superação das representações simbólicas, e, principalmente, o ponto de partida,
qual seja, a franja de intuição que aureola a inteligência ou a unidade originária de
inteligência e instinto. Ambas fundamentar-se-iam na ontologia desenvolvida em
A evolução criadora, onde o instinto aparece ao lado da inteligência como um tipo
de “atividade psíquica”; porém, mais adaptado à vida.

No entanto, essa interpretação da experiência mística como o último nível
da intuição filosófica, como a plenitude da experiência outrora empreendida no
âmbito da psicologia e da filosofia da natureza, embora pertinente, suscita a objeção
de que o último grau da intuição bergsoniana dar-se-ia fora da filosofia, em
uma experiência para a qual o filósofo não está apto. Além disso, embora Bergson
defina a experiência mística como uma intensificação do elã vital - justificando assim
a interpretação da intuição mística como o momento mais elevado da filosofia
– sua proposta final parece ser a ênfase na concessão de um valor metodológico à
experiência mística e na sua agregação, como uma outra “linha de fato”, aos dados
biológicos já considerados em Evolução criadora. Nessa perspectiva, a instrumentalização
metódica da experiência mística e não a experiência mesma seria o está-
gio mais maduro da intuição filosófica.

A experiência mística, ao manifestar o seu contato com a verdade sob a forma
de amor à humanidade, ofereceria, ao filósofo que a considera, não apenas a
explicação da fonte de toda moralidade, mas o segredo da criação, o sentido da
evolução. Entretanto, a apreensão do sentido da evolução criadora tornada possível
através do estabelecimento da relação entre mística e elã vital pressupõe a
objetivação do fenômeno místico levada a termo através da ênfase no seu caráter
experimental ou psicológico em detrimento de sua dimensão teológica ou de sua 
A intuição Bergsoniana entre filosofia e espiritualidade 
apresentação dogmática. Por trás da importante distinção entre religião estática
e religião dinâmica estaria o projeto bergsoniano de uma metafísica positiva fundada
na experiência, sendo a rejeição de uma teologia racional uma consequência
natural da sua teoria da vida que circunscreve e delimita as possibilidades de conhecimento
da inteligência.

O modo peculiar como Bergson se apropria do fato religioso, mais precisamente
da experiência dos místicos, parece estar relacionado a uma oscilação presente
em sua concepção de método e de filosofia: a intuição mística será o momento
mais elevado da filosofia quando a filosofia for considerada um esforço de intuição
da duração; a intuição mística será um mero “auxiliar” da filosofia quando a intui-
ção filosófica for considerada um método de pesquisa. No primeiro caso, trata-se
de um saber não teórico e profundamente transformador, a tal ponto que impele à
ação, mais especificamente à ação amorosa e caritativa. O elã místico seria uma intensificação
do elã vital, porém essa intensificação corresponderia a uma ruptura
ilustrada na distância que separa o filósofo do santo ou do verdadeiro místico. O
último grau da intuição bergsoniana dar-se-ia fora da filosofia, fato passível de ser
interpretado como a aceitação, por parte de Bergson, de uma limitação que lhe seja
intrínseca, não apenas enquanto tentativa de expressão conceitual (limitação a
que chama atenção em toda a sua obra), mas também enquanto tentativa de apreensão
da duração. No segundo caso, a suposta falência da filosofia seria mitigada,
na medida em que o procedimento que lhe compete é propriamente metódico. A
intuição filosófica seria, então, um conhecimento teórico e exprimível, porém indireto,
mediado e possivelmente pouco transformador ou meramente intelectual.

Em um caso, teríamos a intuição filosófica como experiência efetiva cuja completude
ultrapassaria paradoxalmente o esforço filosófico. No outro caso, teríamos a
intuição filosófica como esforço filosófico cuja completude se daria internamente,
dentro de seus próprios limites. Haveria, em suma, entre a intuição filosófica e a
intuição mística uma relação de continuidade (do ponto de vista metodológico) e
de ruptura (do ponto de vista da experiência subjetiva).

A experiência mística, ao ser metodicamente investigada pelo filósofo, ofereceria
as respostas que ficaram abertas em Evolução criadora. De A evolução
criadora para As duas fontes da moral e da religião passar-se-ia da constatação da
vida como criação para o desvelamento do sentido da vida. A consideração da
experiência mística em As duas fontes explicaria o ato da criação e seus efeitos,
acrescentando aos resultados de Evolução criadora a definição da energia criadora
como amor. O místico seria misteriosamente insuflado pelo mesmo elã cujo desenvolvimento
resulta no interminável espetáculo da evolução e exprimiria a intensificação
desse elã como sendo uma experiência de amor que se eleva de sua alma
a Deus e retorna estendendo-se a toda a humanidade. Mas só ao místico é dado
conhecer diretamente o movimento criador que é a vida, a duração. Só ele se põe
em contato direto com a vida, que o transforma, porque se ao filósofo é possível
“saber” que o impulso vital é, em última instância, o amor, somente os místicos se 
deixam absorver e transformar por essa verdade. Se o desvelamento do sentido da
criação como amor equivale à necessidade de expansão desse sentido, ou seja, se
a verdade transforma o sujeito a quem se doa; se o acesso à verdade ou ao sentido
da criação equivale a uma transformação que leva à ação generosa, então não haveria
entre intuição filosófica e intuição mística mais ruptura do que continuidade?

Seríamos, pois, obrigados a rejeitar a hipótese da continuidade entre ambas? Ou
ganharíamos mais se concebêssemos a filosofia como um modo de vida capaz de
preparar o homem para a ‘abertura” plena da moral, restabelecendo assim o vínculo
perdido entre filosofia e espiritualidade?

A compreensão da intuição mística como prolongamento, intensificação
ou máxima espiritualização da intuição da duração é mais coerente com a interpretação
da intuição bergsoniana como função do espírito, graus de apreensão
da duração, experiência psicológica ou vivência interior, enquanto a abordagem
da intuição mística como mero auxiliar da pesquisa filosófica adequa-se melhor à
concepção da intuição bergsoniana como método. Sugerimos que a despeito da importância
da compreensão da intuição como método, a ênfase nessa perspectiva,
quando dada em detrimento do seu aspecto de experiência subjetiva compromete
algo fundamental, a saber, a possibilidade de restituição das relações entre filosofia
e espiritualidade ou o exercício da filosofia enquanto sabedoria de vida. Como
bem coloca Jean-Louis Vieillard Baron: “a filosofia não é somente um trabalho de
reflexão puramente intelectual, embora também não seja unicamente um trabalho
sobre si mesmo

” Acreditamos que seja possível resgatar na intuição bergsoniana
essa dimensão do “trabalho sobre si mesmo”, na medida em que a atitude filosófica
pode ser concebida como esforço da vontade para evitar que a inteligência se absorva
totalmente na ação necessária para a sobrevivência ou na matéria enquanto
campo de investigação ao qual naturalmente tende.

 BARON, Jean-Louis Vieillard. continuité et discontinuité de l´ouvre de Bergson. in Annales Bergsoniennes
I, p.284

Fontes:
pirmpR

Enviado em 12 de dez de 2008-Licença padrão do YouTube
http://anpof.org/portal/index.php/

sexta-feira, 25 de março de 2016

LISTA:19 PALESTRAS -Café Filosófico:1) As vertigens da razão e o mistério da fé - Kierkegaard ...



Café Filosófico: As vertigens da razão e o mistério da fé - Kierkegaard e Pascal
Percy Reflexão 


Pascal e Kierkegaard, que viveram tempos muito distintos da história da Europa, partilhavam a experiência radical de uma razão que, em seus desdobramentos, atinge enfim seus limites, seus abismos, e não se detém em suas bordas, mas neles se precipita corajosamente. A aposta de Pascal e a ironia de Kierkegaard não são apenas criações teóricas geniais, mas sobretudo experiências vividas, vertigens da razão que, com temor e tremor, confronta os mistérios do sagrado e da fé.

Franklin Leopoldo e Silva: 
doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo e professor de História da Filosofia Contemporânea da mesma Universidade. Autor de Descartes ヨ A metafísica da modernidade, Bergson ヨ Intuição e discurso filosófico e Ética e Literatura em Sartre.




Fontes:
https://youtu.be/S8j7ojLpZNI?list=PLY-SvVowhrBaEodaBwWsREqFoC2l64VIn
Publicado em 4 de jun de 2014- Licença padrão do YouTube

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

SPINOZA, POR HENRI BERGSON




Spinoza, por Henri Bergson
por Henri Bergson

SPINOZA nasceu em Amsterdã (Holanda) em 1632. Pertencia a uma família judia e inicialmente fez estudos puramente hebraicos. Mas ao aprender latim e ler Descartes, sentiu se desenvolver sua vocação filosófica. A sagacidade com a qual interpretou as escrituras levou à sua excomunhão pelos rabinos, que, graças a certas influências, conseguiram fazer com que ele deixasse Amsterdã.

Spinoza se refugiou em Haia, onde viveu o resto de seus dias, inteiramente dedicado à meditação filosófica. Teve amigos ilustres e poderia ter obtido, com a ajuda deles, fortuna e honrarias. Recusou tudo isso para se manter independente. Pobre, mas protegido contra a miséria, ganhava sua vida talhando vidros de lentes de aumento. Morreu em Haia em 1677.

Em 1663, Spinoza publicou uma apresentação da filosofia de Descartes sob a forma matemática: Principia philosophiae Renati Cartesii more geométrico demonstrata; em 1670, Tractatus theologico-politicus. Mas os dois trabalhos mais importantes de Spinoza só foram publicados após sua morte, pois o filósofo era tão pouco preocupado com a fama quanto com a fortuna. São elas: Tratado da reforma do entendimento (DE INTELLECTUS EMENDATIONE) e Ética (Ethica more geomerico demonstrata, 1677). A Ética é o trabalho capital de Spinoza. Sua filosofia é ali apresentada de modo geométrico. A Ética procede por definições, axiomas, demonstrações etc.

Objeto de sua filosofia
O objeto de Spinoza é duplo. Pode-se considerar sua obra, efetivamente, tanto do ponto de vista moral quanto do ponto de vista metafísico.

1º.) A filosofia de Spinoza é, antes de tudo, no próprio espírito do autor, uma doutrina moral. O próprio título Ética, dado à obra capital desse filósofo, é significativo.

Não menos significativo é o início do Tratado da reforma do entendimento. Enquanto Descartes busca um método para bem pensar, enquanto o Discurso do método – em que ele nos dá o essencial de sua filosofia – contém apenas uma moral provisória e enquanto a ideia dominante do livro é a de que devemos visar antes de tudo a um discernimento entre o verdadeiro e o falso e ao juízo correto; ao contrário, a ideia indicada logo no começo do De intellectus emendatione, e desenvolvida em diversos momentos na Ética, é a de que o essencial para o homem é o bem agir, é discernir entre os verdadeiros bens e os bens ilusórios e só se apegar às coisas eternas. A filosofia de Spinoza se distingue então, logo de início, da filosofia de Descartes por seu CARÁTER PRÁTICO.

2º.) Mas o cartesianismo, ao mesmo tempo em que colocava a moral em segundo plano por reservar seu estudo para um período posterior ao desenvolvimento da ciência, surgia com dificuldades metafísicas consideráveis, que nos limitamos aqui a enumerar:

a) Se a filosofia de Descartes gravita em torno da prova ontológica da existência de Deus, esta não é em nada concludente, pois Descartes não identifica de modo aberto real e possível. Da possibilidade da existência de Deus, que é a única coisa realmente demonstrada por meio do argumento ontológico, Descartes passa à sua realidade sem justificar suficientemente a passagem.

b) Descartes distinguiu tão profundamente extensão e pensamento que essas duas substâncias não possuem mais nada de comum. E ele é incapaz de explicar como elas agem uma sobre a outra; limita-se a constatar sua união afirmando a união da alma e do corpo.

c) Ao atribuir a Deus uma liberdade de indiferença, e ao fazer, por outro lado, do mundo material um sistema de causas e efeitos submetidos às leis da mecânica, Descartes torna ainda mais obscura do que já é para o senso comum a questão da criação. Ele colocou no mundo criado a necessidade absoluta e universal, e ocorre que essa necessidade aparece como efeito de um capricho divino. Mais do que isso, é preciso que Deus intervenha sem cessar no mundo, para manter o estado atual das coisas, para conservar as mesmas leis. Enfim, se Deus cria o mundo sem cessar, com tudo o que ele contém, ele também não cria nossas ações? E como, a partir de então, compatibilizar a liberdade do homem com a CRIAÇÃO CONTÍNUA? Essas três dificuldades graves, Spinoza as contorna por meio de uma concepção nova, uma concepção original: primeiramente, da relação entre real e possível; em segundo lugar, da relação de causa e efeito; em terceiro lugar, da relação do infinito ao finito. Essa concepção é essencialmente matemática, e o spinozismo não é inteligível para aquele que não acompanha com precisão a verdadeira natureza das proposições matemáticas e, em particular, da matemática cartesiana. Algumas considerações preliminares são, portanto, indispensáveis:

1°) Os objetos que o matemático estuda são objetos reais num certo sentido, pois a linha reta, a circunferência, a elipse etc. são verdadeiros seres para ele. Mas é preciso observar que a realidade desses seres converge com a sua simples possibilidade: pelo mero fato de que são possíveis, existem, no sentido matemático da palavra “existir”. Quando o geômetra quer provar a existência de duas retas paralelas, ele estabelece que é possível conceber duas retas situadas no mesmo plano e que não se encontram. E, com efeito, duas perpendiculares a uma mesma reta satisfariam essa condição. Duas retas paralelas são, portanto, possíveis. Isso basta, e, a partir de então, as paralelas existem. Mais do que isso, essa possibilidade, que existe desde sempre e é até mesmo independente do tempo, permite que se diga que o paralelismo de duas retas sempre existiu: ele é eterno. O ato pelo qual se estabelece a possibilidade de uma essência matemática é, portanto, o mesmo que aquele pelo qual se constata sua existência e até mesmo sua eternidade.

2°) Quando a definição de uma figura geométrica é enunciada, extrai-se um número indefinido de teoremas que exprimem todas as propriedades da figura. Todos esses teoremas existiam na definição de onde são extraídos e não fazem senão exprimir a infinita multiplicidade latente na unidade. Um matemático de inteligência infinita teria acesso a todos esses teoremas no próprio seio da definição a qual eles equivalem. Essa multiplicidade indefinida é equivalente a essa unidade. Está claro que é a definição que cria os teoremas. Eles são o seu efeito, já que não existiriam sem ela. Mas essa criação não é um ato arbitrário da definição. Os teoremas resultam necessariamente da definição pelo simples fato de que ela foi estabelecida. Eles não saem dela num certo momento, ainda que seja necessário tempo para que nosso espírito imperfeito possa deduzi-las. Os teoremas são eternos como a definição, eles lhe são coeternos, como diria Spinoza.

3º.) Enfim, é preciso observar que um objeto matemático é suscetível de ser expresso diversamente e que cada uma de suas expressões o contém totalmente. Considere, por exemplo, a ideia de um círculo. Ela pode ser expressa geometricamente por uma imagem circular e algebricamente por uma equação do segundo grau; ela ainda pode ser expressa de várias maneiras, mas conhecemos apenas duas delas. Mais do que isso, pelo simples fato de que o círculo é possível, todas as suas expressões conhecidas ou desconhecidas existem no mesmo grau e ao mesmo tempo, de tal modo que, uma vez estabelecido o círculo, todas as expressões do círculo, conhecidas ou desconhecidas, são também estabelecidas.

Em resumo, a existência é um conceito que tem dois sentidos: um que poderia ser chamado físico e outro, matemático. O primeiro desses dois sentidos é o mais comum. Se nos colocamos na perspectiva física, a existência não é uma simples possibilidade, pois há vários objetos concebidos como possíveis fisicamente e que não existem realmente. Se nos colocamos ainda nesse ponto de vista, a relação de causa e efeito não é uma relação necessária, pois, dada uma causa, o efeito não é dado ao mesmo tempo. Ao contrário, se nos colocamos na segunda perspectiva, se entendemos a existência no sentido matemático, o ser converge com o possível, e a relação de causa e efeito é simplesmente a relação necessária do princípio à sua consequência; isto é, no fundo a identidade. Veremos que o spinozismo consiste essencialmente em conceber a existência no sentido puramente matemático, em identificar assim a realidade das coisas com a sua possibilidade e a tratar a relação dinâmica de causa e efeito como uma relação matemática do princípio à consequência.

Resumo da Ética
Spinoza define a Substância como “o que existe em si e é por si concebido” (Ética I, definição 3). E se aceitarmos dar à palavra “existência” seu sentido matemático (o que é o postulado oculto de todo o spinozismo), pode-se concluir dessa definição que há uma Substância. Com efeito, se uma coisa não é concebida por si própria, ela é concebida por alguma outra coisa, e é forçoso que se chegue a uma coisa que só é concebida por si mesma. Portanto, a Substância existe. Em segundo lugar, não há senão uma Substância, e essa Substância é infinita. Com efeito, se houvesse várias Substâncias, ou se a Substância fosse finita, é porque uma Substância seria limitada por outras, e por isso seria necessário que essas outras Substâncias tivessem ao menos um atributo em comum com ela. Ora, duas Substâncias que teriam um atributo comum fariam apenas uma, pois o atributo, como veremos, é o que exprime a essência da Substância.

Essa Substância una e infinita é Deus. Sendo infinito, Deus possui uma infinidade de atributos ainda que não conheçamos senão dois deles: o pensamento e a extensão. Cada atributo de Deus se manifesta, por seu turno, por meio de uma infinidade de modos. Só conhecemos desses modos os que são modos do pensamento e da extensão. Se abordamos Deus em seus atributos, todos eles infinitos, diremos que ele é natureza naturante: natura naturans. Se o vemos sob a perspectiva da infinidade de seus modos e mais particularmente nos modos que conhecemos – os modos do pensamento e da extensão -, diremos que ele é natura naturada. Em outros termos, é o mesmo ser que, visto na sua unidade e infinidade, é Deus propriamente dito; e, visto na sua multiplicidade e INDEFINIBILIDADE, é o mundo das criaturas. Deus não é, portanto, causa exterior do mundo, causa transitiva do mundo, como diz Spinoza. Ele é causa imanente. O mundo é co-eterno a Deus, e há entre as coisas criadas e o criador a mesma relação que entre os teoremas que saem de uma definição e a própria definição. Que diferença faremos [agora] entre os atributos e os modos?

1º.) O atributo, segundo Spinoza, é o que exprime a essência da Substância. É preciso tomar aqui a palavra “exprimir” em seu sentido matemático. Da mesma forma que o círculo se exprime a partir de si por uma figura geométrica, por uma equação analítica e, talvez, de muitas outras maneiras, e que se encontra inteiramente em cada uma de suas expressões, assim também a essência infinita da Substância divina se exprime no Pensamento, na Extensão e numa infinidade de outros atributos que não podemos conhecer porque somos apenas modos desse Pensamento e dessa Extensão. DEUS ESTÁ, PORTANTO, INTEIRAMENTE EM CADA UM DE SEUS ATRIBUTOS.

2º.) O modo
Os modos exprimem de todas as maneiras possíveis o conteúdo de cada atributo. Se supusermos de um lado a definição geométrica do círculo e de outro sua equação algébrica, extrairemos da definição teoremas e da equação outras equações. É assim que, se estabelecemos o Pensamento e a Extensão, o que resulta é, por um lado, todos os modos possíveis do Pensamento, isto é, todas as ideias possíveis; e, por outro, todos os modos possíveis da Extensão, isto é, todos os corpos possíveis.

Assim, Spinoza assimila a existência da Substância à de um objeto matemático, o que lhe permite provar a existência de Deus pela demonstração de sua simples possibilidade. A Substância que ele obtém dessa forma se exprime a partir de si mesma em atributos infinitos, e esses Atributos se exprimem a partir de si mesmos em modos. Em lugar nenhum existe uma força criadora ou uma escolha livre. Tudo o que é, existe necessariamente.

Natureza naturante
Deus que é natureza naturante se exprime em seus Atributos em número infinito entre os quais conhecemos apenas o Pensamento e a Extensão.

1º.) A Extensão como atributo, isto é, a Extensão em Deus, não é a extensão de que temos ideias. A extensão que conhecemos é composta de uma multiplicidade de partes. A Extensão divina ou Extensão como atributo é una e indivisível. Mas, poder-se-á dizer, se a extensão que conhecemos é um modo da Extensão como atributo, como a primeira pode ser divisível e a outra indivisível? Essa dificuldade, colocada ao spinozismo desde muito tempo, está longe de ser insuperável. Os modos não são partes do Atributo. Se os corpos que percebemos fossem partes da Extensão divina, é por demais evidente que esta seria divisível como esses corpos. Os modos desenvolvem o conteúdo do Atributo, mas não se assemelham a ele. É assim que, se supusermos todos os círculos possíveis como já traçados, eles são o desenvolvimento de todo o conteúdo da ideia de círculo, e, não obstante, essa ideia enquanto tal é indivisível.

2°) Deus é pensamento, mas o Pensamento divino ou Pensamento como atributo se assemelha tanto ao nosso pensamento que é um modo do Pensamento quanto o Cão, constelação celeste, se assemelha ao cão, animal que late. Os modos do Pensamento são efetivamente finitos, e o Pensamento divino é infinito.

3°) A liberdade. Deus é livre? Se tomamos a palavra “liberdade” no sentido de livre arbítrio, isto é, como livre escolha, não faria sentido, segundo Spinoza, atribuir a Deus semelhante liberdade, pois “o que Deus faz deriva necessariamente de sua essência assim como as propriedades do triângulo derivam necessariamente da essência do triângulo” (Ética, II, proposição 44, escólio). Mas Deus é livre no sentido spinozista da palavra. Spinoza define a liberdade efetivamente da SEGUINTE FORMA

“Ea res libera dicitur quae ex sola suae naturae necessitate existit et a se sola ad agendum determinatur”. Assim, a liberdade, segundo Spinoza, é o estado de um ser que não sofre nenhuma limitação exterior a si mesmo, não recebe de fora as leis de seu desenvolvimento, mas se desenvolve em virtude de uma necessidade inerente à sua natureza. A liberdade spinozista é, portanto, o que chamaríamos de “necessidade interna”.

Desenvolver-se necessariamente, mas conforme sua própria essência, eis aí a verdadeira liberdade segundo Spinoza. É assim que uma definição geométrica, se tomasse consciência de si mesma e de seu desenvolvimento em teoremas, seria livre nesse sentido em que o teorema é apenas a expressão de sua natureza e não depende de nenhuma outra causa. Uma vez que Deus é a Substância única e é todo o ser, ele não pode ser tomado por nenhuma necessidade exterior a ele. Ele se desenvolve, portanto, de forma livre, ainda que necessária.

4°) A impessoalidade. Segue-se daí que Deus não é uma pessoa. A pessoalidade (PERSONALIDADE) é uma determinação e, por conseguinte, uma limitação. Deus é um Pensamento infinito ou uma Extensão infinita. Ele é infinito em todos os sentidos.

Eis o Deus de Spinoza, Substância infinita se exprimindo necessariamente em Atributos infinitos e em Modos infinitos e finitos. Ele contém eminentemente – como dizia Descartes -, e não formalmente, o pensamento e a extensão que representamos; assim como uma infinidade de outros Atributos. Mas ele não é uma pessoa, porque a Substância não é uma propriedade, mas sim uma negação de toda qualidade.

Natura naturada
A natureza naturada não guarda com a natureza naturante as relações que se dão entre uma coisa criada e seu Criador. Ela lhe é co-eterna e se segue necessariamente da essência de Deus, da qual é expressão múltipla e indefinida. A natureza naturada é um conjunto de Modos, Modos da Extensão de um lado, do Pensamento de outro.

1°) Os corpos. Os Modos da Extensão são os corpos. Retomando nesse ponto as ideias de Descartes e as desenvolvendo, Spinoza representa o universo material como um sistema indefinido de elementos extensos submetidos a leis necessárias. Tudo se explica MECANICAMENTE, os corpos viventes assim como os demais corpos. Mais do que isso, todos os corpos vivem de uma certa maneira, pois a todo corpo responde uma ideia que é como a alma dele. Mas, como também veremos, não pode haver nenhum contato, nenhuma comunicação entre as ideias e os corpos. Além disso, nada é mais absurdo, segundo Spinoza, do que crer numa finalidade na natureza. A finalidade é a ideia penetrando na matéria. Ora, entre os Modos do Pensamento e os da Extensão toda comunicação é impossível e inconcebível. Os estados dos corpos e suas mudanças se explicam, portanto, por causas puramente mecânicas, e um Modo da Extensão não pode achar sua explicação e sua razão de ser senão em outros Modos da Extensão.

2°) As ideias. Os Modos do Pensamento são as ideias. Da mesma forma que o atributo Extensão se exprime numa infinidade de modos extensos, assim também o atributo Pensamento se desenvolve numa infinidade de ideia. Da mesma forma que todo modo da extensão se explica por modos da extensão, assim também toda ideia encontra sua razão em outras ideias. Essa é a razão pela qual os corpos não poderiam influir nas ideias, assim como estas não podem exercer influência sobre os corpos. De que maneira, então, conhecemos os corpos, e como se explica a ação aparente do pensamento sobre as coisas e das coisas sobre o pensamento? É que a série dos Modos do Pensamento e a série dos Modos da Extensão são duas séries paralelas. Na realidade, os Modos do atributo Extensão desenvolvem e exprimem todo o conteúdo do atributo Extensão; os Modos do Pensamento exprimem todo o conteúdo do atributo Pensamento; e como o Pensamento e a Extensão são, por sua vez, apenas duas expressões equivalentes da essência da Substância, segue-se que, para todo modo extenso deve corresponder um modo do pensamento e reciprocamente. Todo corpo também responde a uma ideia, e toda ideia, a um corpo. A alma humana não é outra coisa senão a ideia do corpo ao qual ela se encontra ligada. Como diz enfaticamente Spinoza: “ORDO ET CONNEXIO IDEARUM IDEM EST ATQUE ORDO ET CONNEXIO RERUM”.

Segue-se daí que, no nosso pensamento em particular, não podem haver ideia que não representem alguma realidade e, inversamente, nada pode acontecer ao nosso corpo de que nossa consciência não esteja advertida. E, no entanto, entre o corpo e o pensamento não há comunicação possível. Suponhamos, para compreender a concepção spinozista das relações entre a alma e o corpo, a ideia do círculo se exprimindo, de um lado, por uma equação algébrica e, de outro, por uma definição geométrica; se desenvolvemos essa definição em teoremas que chamaremos A1, A2, A3, A4 e se desenvolvemos essa equação em equações que chamaremos a1, a2, a3, a4, os termos a3 e a4, por exemplo, representarão sob forma algébrica as mesmas coisas que os termos A3 e A4 representam sob forma geométrica, pela razão bastante simples de que as duas séries desenvolvem e exprimem em duas línguas diferentes a mesma essência da circunferência. Entretanto, nem uma equação poderia influir sobre uma figura nem uma figura sobre uma equação, porque a forma e a quantidade são dois atributos diferentes no sentido spinozista da palavra. É dessa mesma maneira que todo corpo tem sua ideia e que toda ideia tem seu estado corporal. A correspondência dos Modos do Pensamento e da Extensão se explica, portanto, por uma HARMONIA PREESTABELECIDA e pelo mero efeito do desenvolvimento necessário da essência da Substância.

Entre os Modos do Pensamento, há os que nos interessam em particular. Trata-se daqueles que, reunidos, formam a alma humana. A alma não é uma substância, posto que Deus é a única Substância. Nossa alma é uma coleção de Modos do Pensamento que exprimem cada qual sob forma de pensamento um certo estado do nosso corpo. Da mesma forma que os Modos da Extensão são submetidos a um mecanismo inflexível, assim o desenvolvimento dos Modos de Pensamento é rigorosamente necessário. Não há CONTINGÊNCIA, diz Spinoza, nem nos Modos do Pensamento e nem dos da Extensão: “Nullum datur contingens in rerum natura”.

Compreende-se, portanto, por que Spinoza apresentou nas três últimas partes da Ética uma psicologia que é, ao mesmo tempo, uma metafísica, em que ele trata dos estados da alma a partir da ideia da Substância e de seu desenvolvimento necessário. Spinoza classifica as ideias em ideias adequadas e inadequadas. Há duas maneiras principais de conhecer uma coisa: pode-se, de início, buscar as relações da coisa finita com outras coisas finitas. Mas, como estas dependem a seu turno de outras coisas finitas, e que, de uma maneira geral, todos os modos em número infinito de um mesmo atributo estão em conexão mútua, nunca a coisa será perfeitamente conhecida. A ideia permanecerá inadequada. Há outro modo de conhecer, que consiste em se recolocar por meio do Pensamento no Princípio em que a coisa está contida, à maneira de um Modo no atributo. Então, percebe-se de uma só vez, e numa única intuição, a relação da coisa finita com o Princípio infinito de onde ela EMANA e, por conseguinte, também, a relação com a infinidade das coisas finitas que equivale a esse Princípio. Obtém-se, assim, a ideia adequada, e não mais inadequada, do objeto pensado.

Entre as ideias inadequadas, é preciso colocar as paixões que exprimem nos modos do Pensamento as modificações que o corpo recebe dos demais corpos. É ao estudo das paixões, da escravidão a que elas nos reduzem e do estado de liberdade que podemos atingir, que são dedicadas as três últimas partes da Ética. Spinoza, que trata o livre-arbítrio como uma ilusão ou quimera, não deixou por isso de escrever um tratado de metafísica que contém um sistema moral. Mas não devemos achar que Spinoza nos dá conselhos ou mesmo REGRAS DE CONDUTA. Tudo o que fazemos se segue necessariamente daquilo que somos, e todo conselho é inútil, assim como todo lamento acerca do que poderíamos ter feito é pueril. O papel do moralista é de definir o bem e o mal, os melhores estados e os que devemos considerar como piores. Trata-se de determinar em que condições a escravidão é produzida, em que condições se produz o estado de uma alma liberada do jugo das paixões.

Mas o moralista não reforma a humanidade ao tratar do bem e do mal, assim como GEÔMETRA não modifica a posição de um corpo ao determinar as condições de seu equilíbrio.

Há, com efeito, dois estados possíveis da alma. Olhando as ideias inadequadas, e mais particularmente as paixões, a constituem essencialmente, ela é escrava. [Mas] ela é livre quando escapa à paixão, isto é, quando passa da ideia inadequada à ideia adequada, quando pensa não sob forma finita mas sob forma de eternidade, sub specie aeterni. O bem e o mal, segundo Spinoza, devem se definir em termos de aumentos e diminuições de ser, ou seja em termos de força, e existimos plenamente quando nos re-situamos por meio do pensamento em Deus, quando nos damos conta da necessidade universal. Se, portanto, a liberdade consiste, no caso de Deus, na necessidade de seu desenvolvimento interior, ela consiste, no caso do homem, na consciência que ele consegue ter de suas relações com Deus, isto é, na consciência da necessidade a qual ele obedece. É nisso que consiste a liberdade, e é nisso que também consiste a BEATITUDE. A beatitude não é o prêmio pela virtude – diz Spinoza -, ela é a própria virtude. Pois a virtude é o estado de uma alma que compreende e sente o parentesco que tem com Deus, estado de uma alma que se encontra, por assim dizer, recolocada em Deus. Aí também se encontra a eternidade, pois a eternidade não é algo que é acrescentado à alma e que prolonga de algum modo sua existência, indefinidamente. Tornamo-nos eternos pelo simples fato de que, ao pensar as coisas sob forma de eternidade, coincidimos, por assim dizer, com o eterno. O eterno não vem até nós, somos nós que entramos na eternidade, pelo simples fato de que, uma vez liberados das paixões, adquirimos algo da liberdade divina.

Extraído das aulas complementares de filosofia e história
da filosofia por Henri Bergson – ClermontFerrand, 1884-1886.
Tradução e notas com comentários de Paulo Domenech Oneto.
ln: BERGSON, Henri. Cours ID: Leçons d’histoire de la philosophie moderne.
Théories de fâme. Paris: PUF, 1998, p. 86-96.

Organizadores: Eric Lecerf, Siomara Borba e Walter Kohan.