sábado, 18 de maio de 2013

O PENSAMENTO ÉTICO DE HENRI BERGSON



O PENSAMENTO ÉTICO DE HENRI BERGSON
SOBRE AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO

André Brayner de Farias
O esforço criador só passou com êxito na
linha de evolução que chegou ao homem.
Ao atravessar a matéria, a consciência
adquiriu então, como num molde,
a forma da inteligência fabricadora.
E a invenção, que traz em si a reflexão,
expandiu-se em liberdade.
Henri Bergson
1 Introdução
As duas fontes da moral e da religião (1932), penúltima obra
publicada de Henri Bergson, é frequentemente referida no rol
dos escritos mais importantes do filósofo francês, porém é pou -
co explorada pelos estudiosos e pouco citada se compararmos
ao interesse suscitado pelas primeiras obras. É nessa que en -
con tra mos o pen sa men to éti co de Berg son. A religião e a moral
são ali compreendidas como fenômenos da ação humana na
história evolutiva das sociedades. 

As duas fontes, correspondendo ao aberto e ao fe cha do, são como for ças que irão produzir duas tendências divergentes de manifestação societária da
religião e da moral: a fechada, que vai na direção da estabilidade, e a aberta que tenderá ao dinamismo. A religião estática é um fenômeno natural, resultante do destino evolutivo da espécie humana, que é, por um lado,
 a inteigência com sua tendência individualizante e libertadora, e, por outro lado, a vida social com sua tendência de coesão e diluição das individualidades.

Bergson diz que a religião estática tem uma função fabuladora cujo objetivo é produzir um imaginário (por exemplo, o tabu) que pretende corrigir a tendência desagregante da vida inteligente; é,portanto, um fenômeno social e natural no desenvolvimento evolutivo da vida humana. Fica claro que a perspectiva bergsoniana a respeito do fenômeno religioso não é teológica, mas antes 
filosófica, e, num sentido particular, sociológica e antropológica.

A moral tem também esse caráter de coesão social, e a sociedade é uma tendência naturalmente local e fechada: a moral surge como uma força de controle da natureza humana para conservar a unidade social sempre ameaçada pela tendência libertadora da individualidade inteligente. Uma moral aberta corresponderia, segundo Bergson, ao amor da humanidade inteira,espécie de retorno criativo do espírito ao élan vital. A ideia de fra -
ternidade deseja corresponder a essa tendência, que é observada apenas raramente na figurados gran des místicos e dos grandes heróis da história.

O vitalismo bergsoniano
 reserva, dessa forma, ao ser humano 
a responsabilidade quanto ao destino livre e criativo da vida, 
a invenção criadora que é o desejo profundo da liberdade.
O objetivo desse ensaio é apresentar a concepção ética do bergsonismo, procurando mostrar a articulação da ética no projeto geral dessa filosofia. Queremos mostrar como o evolucionismo bergsoniano se desdobra na moral aberta e dinâmica, concebendo-a como li nha de evolução da vida em geral e da ética em particular; como o fenômeno social da religião e da moral
pode ser interpretado en quanto ações da vida humana no complexo do qua dro evolutivo da vida; e também como a liberdade responde ao destino da expansão criativa da vida. 

O ponto de partida será a questão das linhas divergentes da vida, segundo  capítulo de A evolução criadora.

2 Instinto e inteligência
Sabemos, desde Darwin, que a vida é o resultado de um longo processo evolutivo. Cada forma de vida manifesta um momento exitoso da natureza em seu permanente trabalho para conservar a energia de um élan vital que, nos pri mór di os da história evolutiva da vida, fez surgir as primeiras formas organizadas de matéria e, des de então, prosseguiu em diversas direções, moldando formas cada vez mais com plexas. Bergson desenvolve uma alternativa de interpretação do processo evolutivo por considerar limitante as duas correntes teóricas principais que no sé cu lo XIX orientam o conjunto das ideias científicas a esse respeito: o mecanicismo e o finalismo. A primeira interpreta a vida como um sistema mecânico que reage aos estímulos ex -
ternos do habitat, sendo que cada resultado atingido no longo trabalho evolutivo pode ser mecanicamente explicado pelo esquema da causa e efeito. 

O darwinismo, ao explicar a evolução da vida pelo processo da adaptação, tende a reduzir o fenômeno evolutivo a um mecanismo: as espécies são o resultado de um longo trabalho de adaptação às circunstâncias externas, cuja
oferta de recursos é sempre limitada, e, portanto, uma espécie sem pretende a disputar com outra, e a que estiver mais adaptada à captura do recurso irá sobreviver. A explicação finalista concebe para a na tu re za um pla no de ação, um projeto, como se tudo o que vai acontecendo já estivesse programado no início da história evolutiva. 

Para uma teoria finalista não existe a possibilida de da criação, da vida como processo inventivo. Não existe,propriamente falando, o futuro, pois ele já está todo contido no primeiro instante da história da vida. Todo o primeiro capítulo de A evolução criadora se de di ca a criticar essas duas formas de
pensamento. Bergson procura uma saída interpretativa onde o elemento fundamental da vida que é sua capacidade criativa não só tenha lugar no processo evolutivo como também signifique o seu motivo fundamental.

A hipótese de Bergson para a interpretação do fenômeno evolutivo da vida diverge da ideia clássica, que remonta a Aristóteles e que considera a evolução em uma espécie de linha mestra que orienta o fenômeno da vida das for mas primitivas às formas mais evoluídas, até finalmente chegar ao ser humano.

Assim inicia o capítulo segundo de A evolução criadora:

O movimento evolutivo seria uma coisa simples, e rapiamente poderíamos determinar-lhe a direção, se a vida descrevesse uma trajetória única, como a de uma bala maciça disparada por um canhão. Mas lidamos aqui com um obus
que logo a seguir se estilhaça em fragmentos, os quais sendo eles própri os uma espécie de obus, explodem, por sua vez, em fragmentos destinados a explodir ou tra vez, e a sim sucessivamente durante muito tempo.1

Duas tendências divergentes marcam prime iramente o destino da vida: o torpor, vida vegetativa e a mobilidade, vida animal em geral. A última tendência se diferencia em outras duas linhas divergentes: o instinto e a inteligência. Interessante é o acento na ideia de tendência, que já indica a diferença de estilo da filosofia bergsoniana para a tradição. Não avançamos na
com preensão do élan criativo da vida se nos situarmos de forma
definitiva em estados ou características que diferenciam de forma geral os organismos vivos. Exemplo: a vida vegetal é imóvel, a vida animal é móvel. A noção de tendência é bem mais consequente: o vegetal tende à fixação, pois desenvolveu a capacida de de extrair seu alimento diretamente do solo, da água e do ar; o animal tende à mobilidade, pois precisa chegar até seu alimento. Mas vamos encontrar exemplos de animais e vegetais que contrariam suas tendências mais naturais: as plantas insetívoras e os animais de carapaça, que tiveram sua capacidade motriz prejudicada pelo desenvolvimento das carapaças, verdadeiras armaduras de proteção. Significa isso que cada forma de vida tem virtualmente todas as tendências de desenvolvimento da vida, porém atualizam apenas a sua, ou seja, aquela que vai de finir, segundo funções específicas, a ordem de um grupo.

O desenvolvimento da consciência está associado à vida animal, exatamen te pela necessidade do movimento em direção ao alimento: os organismos mais primitivos já indicam alguma capacidade consciente na medida em que podem se locomover livremen te. A capacidade de escolha e de hesitação
diante de alternativas distintas define para Bergson a cons ciência. O que acontece é uma especialização dessa função na medida em que a vida evolui pela orientação do aperfeiçoamento dos centros nervosos. Nos animais superiores, a capacidade da escolha e do cálculo já é bem acentuada, no ser humano ela chega a seu ápice.

Bergson interpreta as três grandes direções da vida – a saber: o torpor, o instinto e a inteligência – como linhas di ver gentes de um mesmo esforço criador. O élan vital carrega em si essas tendências, todas juntas, e na medida em que a vida vai evo lu indo e se con for man do em sua di ver si da de de for mas, as tendências vão se separando e definindo direções divergentes. A separação das tendências é uma exigência da necessidade de crescimento: para que uma função se fortaleça, ela necessita de uma atenção exclusiva da vida a qual serve. A diferença dessa concepção evolutiva para as filosofias da natureza tradicionais, que direta ou indiretamente derivam do aristotelismo, é que a divergência significa uma distinção de natureza e não de intensidade,como tradicionalmente era considerado.2 

O elán vital não dis põe apenas de uma via de evolução. Sua sabedoria criativa consiste justamente em diversificar os caminhos à procura do material
mais adequado para a reali zação mais plena possível de suas potências. O instinto é algo diferente do que uma inteligência menor; é uma alternativa de solução para os obstáculos de expansão da vida, da mesma forma como a inteligência é outra.

“Instinto e inteligência representam, então, duas soluções divergentes, igualmente elegantes, de um mesmo e único problema”.3 Para cada caminho a vida tratará de desenvolver a melhor forma possível, ou seja, a mais bem sucedida: no lado do instinto, o ápice do desenvolvimento são as formigas e as abelhas, no lado da inteligência é o ser humano. E sucesso em termos evolutivos significa “uma aptidão para se desenvolver nos mais diver -
sos meios, através da maior variedade possível de obstáculos,
de maneira a cobrir a mais vasta extensão possível de território”.4

Parece absurdo, mas a conclusão é que, do ponto de vista da potência do élan vi tal, abelhas e formigas são tão evoluídas quanto seres humanos,5 a diferença é “apenas” a opção de caminho selecionada: para os insetos o instinto, para os humanos a inteligência.

É necessário esclarecer as diferenças entre esses mecanismos da vida psíquica, o instinto e a inteligência. O mais im portante, e que implica diferença de natureza, é quanto ao tipo de conhecimento configurado em cada caso. Outra questão diz respeito à consciência, porém, nesse caso, trata-se mais de uma diferença de grau.

É um equívoco dizer que um animal sem sistema nervoso organizado não possui consciência. Segundo Bergson, isso se -
ria o mesmo que dizer que um animal que não desenvolveu estômago não tem capacidade de se alimentar.6 A questão é que, no caso dos organismos instintivos em geral – e isso vai variar bastante de organismo para organismo –, a consciência se encontra adormecida, ou melhor, anulada. Bergson define a consciência pela evolução da capacidade de ação (mais precisamente de 
locomoção). 

Os animais instintivos tendem à inconsciência: não
existe diferença entre a representação do ato e a ação realizada.
O ato coincide com sua ideia. O exemplo do sonâmbulo é es cla -
re ce dor: o sonâmbulo vive o seu so nho, ou seja, age exa ta men te
no mesmo plano em que pensa (inconscientemente), não exis -
tindo diferença entre o projeto e a ação. Quando o sonâmbulo
encontra qualquer obstáculo para sua ação, ele ten de a acor dar
e retomar sua consciência.7 Acon te ce que o pla no da ação se
afasta de seu projeto criando esse intervalo, que é exatamente o
que Berg son cha ma de cons ciên cia. 

A cons ciên cia é o in ter va lo
da hesitação e a possibilidade da escolha, origem da liberdade.
Como toda fun ção ge ral da vida, a cons ciên cia tem uma his tó ria
evolutiva, e desenvolve-se na direção da inteligência. A cons -
ciência intensifica-se na medida em que os centros nervosos se
especializam, se complexificam, se centralizam. A atividade ce -
rebral potencializa a função da consciência, fortalece-a instru -
mentalmente tornando-a uma habilidade sofisticada nos verte -
brados superiores. A história evolutiva da consciência significa
uma trajetória de intensificação, uma origem dispersa e um des -
tino concentrado e fortalecido acompanhando o desejo funda -
men tal do élan vital que é o da máxima expansão da vida.
A dis tân cia en tre a re pre sen ta ção do ato e a ação en con tra
sua máxima intensidade no ser humano. A consciência humana
traz consequências fundamentais para o destino evolutivo da
vida inteligente. A origem da religião e da moral se associam a
esse intervalo de hesitação que no ser hu ma no pro du zi rá o
Cadernos IHU ideias 7
5 “Diz-se que, tal como o ho mem é se nhor do solo da ter ra, as for mi gas são as
se nho ras do sub so lo”. EC, p. 125.
6 Cf. EC, p. 105.
7 Cf. EC. p. 134.
medo, a cons ciên cia do ris co e da mor te. A in ter pre ta ção berg -
soniana para o fenômeno religioso não é teológica, como vere -
mos. Aproxima-se, antes, de uma necessidade adaptativa da
vida in te li gen te. Aliás, a vida pa re ce ser uma es pé cie de ma triz a
partir da qual todas as manifestações materiais e espiri tuais ga -
nham sen ti do. Assim, não só po de mos fa lar nas es pé ci es vi vas,
digamos, no fenômeno material da vida, como fazem os biólo -
gos, mas tam bém en ten der o des ti no do pen sa men to em sua di -
versidade de manifestações como um fenômeno que correspon -
de a essa ma triz vi tal, en ten der o pen sa men to como uma for ça
de expansão evolutiva da vida. O risco dessa interpretação é es -
tabelecer critérios que autorizam uma classificação dos menos e
dos mais evoluídos. Dizer, por exemplo, que uma sociedade
apenas religiosa é menos evoluída que aquela que produz filo -
sofia e ciência. Sabemos o quão problemático, na medida em
que sem pre será ar bi trá rio, é esse tipo de en ten di men to. A con -
cepção evolucionista de Bergson “se salva” dessa armadilha,
uma vez que não se resolve na linearidade: uma sociedade evo -
luída sempre será virtualmente tão primitiva quanto uma socie -
da de pri mi ti va, da mes ma for ma que esta será sem pre vir tu al -
mente tão evoluída quanto à primeira. Portanto, não tem sentido
falar em evoluído e primitivo. As tendências da vida psíquica es -
tão vir tu al men te pre sen tes em cada for ma de vida. Um ser in te li -
gente é virtualmente instintivo e vice-versa. Uma tendência não
se apa ga pelo fato de que ou tra ten dên cia en con trou me lho res
con di ções para a sua atu a li za ção. E o pen sa men to será um re -
flexo do estado de atualização dessas tendências. Para enten -
der com Berg son a vida hu ma na no ce ná rio da vida em ge ral, no
con jun to da natureza, é preciso compreender o pensamento
como fenômeno vital, pois o pensamento manifesta o estado
evolutivo da consciência na forma humana da vida. Dessa forma,
o pensamento se torna tão digno de análise quanto qualquer
fenômeno adaptativo de um mecanismo fisiológico. A questão é
que o pensamento solicita uma análise filosófica e não mais
apenas científica.
Se a cons ciên cia é uma ques tão gra da ti va da vida em ge ral,
o conhecimento instintivo e o conhecimento inteligente configu -
ram uma fundamental diferença de natureza. Digamos que o ob -
jetivo da atividade psíquica é o mesmo no instinto e na inteligên -
cia: trans for mar a ma té ria em vis ta da per for man ce adaptativa do
ser envolvido. O mecanismo de ação e, portanto, o conhecimen -
to produzido são diferentes. A definição bergsoniana é precisa:
“o instinto completo é uma faculdade de utili zar e mesmo de
cons tru ir ins tru men tos or ga ni za dos; a in te li gên cia com ple ta é a
faculdade de fabricar e de empregar instru mentos inorganiza -
dos”.8 Exem plos: a indústria complexa e perfeita das abelhas (a
8 André Bray ner de Fa ri as
8 EC, p. 131.
colmeia) e a indústria complexa e imperfeita dos humanos. Mas
a imperfeição da empresa inteligente não é uma desvantagem,
mas justamente o grande motivo da supremacia humana na me -
dida em que incentiva a cri a ti vi da de da consciência. A perfe ição
das abe lhas pro vém de um co nhe ci men to que em nós per ma ne -
ceu adormecido para que tivesse espaço o destino evolutivo e
criativo da inteligência. O instinto é o conhecimento perfeito do
objeto, como se sujeito e objeto tivessem sido moldados um
pelo ou tro, um nas cen do de den tro do ou tro, sen do com pos to
da mes ma na tu re za. É isso que ve mos quan do um bebê re -
cém-nas ci do en con tra pela pri me i ra vez o seio da mãe: pa re ce
que ele já sem pre sou be fa zer aqui lo. O mo vi men to do bebê que
mama é tão per fe i to quan to o da abe lha que cons trói ge o me tri -
camente as galerias de sua colmeia. Já nasceram sabendo. O
conhecimento instintivo é produzido pela natureza e sempre
com uma fi na li da de es pe cí fi ca e úni ca, ou seja, não pode ser
apro ve i ta do para outro fim que não exatamente aquele.
A inteligência tem a capacidade de variar a utilização de
seus instrumentos. Os utensíli os fabricados não estão natural -
mente destinados. Significa que o conheci mento adquirido não
é propriamente do objeto ou da matéria moldada, mas das infini -
tas re la ções que po dem ser fe i tas. Berg son diz que o ins tin to co -
nhece as coisas enquanto que a inteligência conhece as re la -
ções en tre as co i sas. Do pon to de vis ta de sua apli ca ção na re a li -
dade, no primeiro caso, o conhecimento é interno e movente, no
segundo, ele é externo e estático. A exteriorização do conheci -
mento instintivo é a ação nos objetos, sempre perfeita e harmô -
nica porque fabricada pela própria natureza, como se represen -
tasse o ritmo ou a musicalidade natural das coisas. Ou ainda,
como se o instinto conhecesse a duração real da vida. A in te ri o ri -
zação do conhecimento inteligente é o alcance da consciência,
o tra ba lho da re fle xão. Ain da po de mos fa lar em ter mos de ma té -
ria e forma. A relação entre as coisas constitui um conheci mento
formal, a concentração nas coisas constitui um conheci mento
material. O conheci mento material-instintivo seria o ideal se não
fosse exclusivista, se pudesse se estender a todos os objetos, se
pudesse se desligar do conteúdo ao qual unicamente ele pode
se refe rir. Seria uma espécie de instinto inteligente. O conheci -
mento formal tem a vantagem de poder instrumentalizar toda a
natureza, já que não se refere a um conteúdo específico, mas à
relação entre conteúdos.
Uma forma, precisamente porque vazia, pode ser preen -
chi da por qual quer co i sa, mes mo por co i sas que não ser -
vem para nada. De ma ne i ra que um co nhe ci men to for mal
não se li mi ta ao que é pra ti ca men te útil, ain da que fos se em
vista da utili dade prática que ele apareceu no mundo. Um
Cadernos IHU ideias 9
ser in te li gen te traz con si go os me i os com que se su pe rar a
si pró prio.9
A inteligência é por excelência o instrumento de domínio
sobre a natureza. O intervalo de imperfeição, que sempre consti -
tui o utensílio inteligentemente fabricado em vista de sua finalida -
de, retroalimenta a própria atividade inteligente na direção de
uma criatividade crescente. O resultado evolutivo é um afasta -
mento crescente do ser inteligente com relação à natureza. Po -
demos dizer que a natureza controla o instinto, mas a inteligên -
cia tende a controlar a natureza, transformando progressiva -
mente seu material em vista do aperfeiçoamento da ação. A his -
tória evolutiva da humanidade, desde os primeiros vestígios de
artefatos, demonstra esse progresso e essa tendência de con -
trole.10 Po rém, a van ta gem que a in te li gên cia leva pelo fato de
po der apli car seus ins tru men tos sem res tri ção, já que eles não
es tão amar ra dos a ne nhum ob je to es pe cí fi co, é ape nas pro je ti -
va, não po den do se re a li zar. A in te li gên cia é uma es pé cie de
for ça bru ta, sem su ti le za, que se es pa lha pelo es pa ço re co lhen -
do suas li nhas ge o mé tri cas, uma for ça ca paz de gran des pro e -
zas ins tru men ta is, di ga mos téc ni cas, mas que não che gam a se
apli car ao fun do es sen ci al da re a li da de, que é onde ela de se ja -
ria ir.11 A esse lugar o instinto acessa imedi atamente, mas ape -
nas naquele objeto único que a natureza destinou para sua apli -
cação. Bergson sintetiza a questão: “Há co i sas que só a in te li -
gên cia é ca paz de pro cu rar, mas que, por si pró pria, nun ca en -
con tra rá. Estas co i sas, ape nas o ins tin to as po de ria en con trar;
mas ele nun ca as pro cu ra rá”.12 O conheci mento seria absoluto
10 André Bray ner de Fa ri as
9 EC, p. 140.
10 Toda uma fi lo so fia da eco lo gia pode ser des do bra da a par tir do berg so nis mo.
De fato, pa re ce que o des ti no evo lu ti vo do ser in te li gen te é an ti e co ló gi co. Se a
in te li gên cia pu der se guir li vre men te sua ten dên cia na tu ral, sua evo lu ção pres -
su põe o afas ta men to da na tu re za, na me di da em que é jus ta men te na pers pec -
ti va do con tro le e da trans for ma ção que ela se de sen vol ve. A eco lo gia sur ge
como consciência desse destino, e é inevitável que ela transcenda o horizonte
estreito da ciência, que ela passe a inspirar a espiritualidade religiosa e que
avance na direção da filosofia. Porque a ciência é, por excelência, o instrumen -
to da inteligência. Uma ecologia apenas científica não avançaria na direção de
uma nova relação do ser humano com a natureza. É possível desenvolver não
só uma ética, mas uma estética ambiental a partir da filosofia bergsonia na.
11 A ciên cia com sua pa ra fer ná lia tec no ló gi ca ex pres sa bem essa for ça bru ta da
in te li gência hu ma na, bem como o seu de se jo cego de che gar à es sên cia da
re a li da de por uma via que não per mi te o aces so. Qu an do as pes qui sas do ge -
no ma hu ma no pro me tem des ven dar o se gre do da vida é exa ta men te isso que
está em ques tão. O se gre do da vida per ma ne ce ca la do no fun do do me ca nis -
mo cro mos sô mi co que nada mais faz do que in for mar so bre a con di ção ma te ri al
da ori gem da vida, cada vez mais com ple xa na me di da em que avan ça o ní vel
de conhecimento. A informação genética sobre a origem da vida está fada da a
se aproximar infinitamente, sem poder jamais coincidir com a simplicidade do
fe nô me no fun da men tal que é a ener gia cri a ti va do élan vi tal.
12 EC, p. 140.
num ser que ti ves se de sen vol vi do até o fim a sua in te li gên cia e o
seu instinto. Mas a natureza trabalha fazendo escolhas. O desen -
volvimento da inteligência custa o recalcamento do instinto.
A saída para o impasse evolutivo da vida inteligente está na
in tu i ção, que é a fa cul da de de co nhe cer sem a me di a ção do
conceito: ela permite o acesso imediato do objeto. A intuição,
que é o método mais adequado à filosofia segundo Bergson, é
“o instinto tornado desinteressado, consciente de si próprio, ca -
paz de refletir sobre o seu objeto e de alargá-lo indefinidamen -
te”.13 Eis o destino evolutivo da filosofia no desenvolvimento do
pensamento: compreender a vida mergulhando em sua interiori -
dade. A filosofia, através da metafísica, não deseja outra coisa
que expressar o élan vital criador. A exteriorização e o domínio
da matéria são obra da inteligência; a interiorização e a compre -
en são da vida, ou seja, da duração são obra da in tu i ção. Como
uma nova diferenciação evolutiva, semelhante a que se verifica
ao longo de todo o processo, a consciência reflexiva concentra a
tendência da matéria e da duração (espírito criador, élan vital), e
pode seguir na direção do domínio espacial pela via inteligente
(ciên cia), ou na di re ção da pró pria vida pela via in tu i ti va. Sen do
que seguir adiante significa mergulhar na interioridade da vida
através da ampliação constante da capacidade intuitiva. A emo -
ção artística, o sentimento místico, o amor e também o sentido
ético da vida são de natureza intuitiva e desejam chegar ao
mesmo lugar: ao espaço-tempo da criação, onde nada cessa de
terminar ou de nascer de novo.
3 Fun ção fabuladora
Viver em sociedade não é uma escolha que estamos em
condições de fazer. A natureza, muito antes que a liberdade esti -
vesse ao alcance da consciência humana, destinou para o ser
humano a vida societária. Ao mesmo tempo, a vida inteligente se
desenvolve na direção da individualidade. Se o instinto é natural -
mente societário, a inteligência é naturalmente individualista. Se
a úni ca for ça que co man das se nos sa vida fos se o psi quis mo da
inteligência, não viveríamos em sociedades. Não há nada na in -
teligência que considere vantajosa a presença dos outros, muito
pelo contrário: a inteligência está a serviço da expansão livre e
individual da vida. Sua tendência será, portanto, antissocial, de -
sagregante. É natural, na perspectiva evolucionista, que a vida
humana desenvolva uma tendência contrária à força individuali -
zan te, já que o de se jo da na tu re za foi o de or ga ni zar a vida hu -
mana em sociedade. Bergson chama de religião natural a essa
força primitiva que tem como função básica a coesão social.
Essa força é uma espécie de saber instintivo que reorganiza o
Cadernos IHU ideias 11
13 EC, p. 162.
que a inteligência tende a desorganizar. O mecanismo da reli -
gião na tu ral (es tá ti ca e fe cha da) é semelhante ao de uma fábula.
A religião estática tem uma função fabuladora.
A reli gião estática é como a infância da humanidade. Inven -
ta mos para uma cri an ça his tó ri as de he róis, fa das ou mons tros
quando quere mos corrigir alguma resistência sua, seja uma co -
ragem excessiva, seja um medo. Facilmente encontramos resul -
tado. A criança é natural mente um ser fabulante. Da mesma for -
ma a hu ma ni da de em sua “fase pri mi ti va”. Mas é sem pre bom
lem brar que não se tra ta para Berg son de uma evo lu ção li ne ar: o
elemento primitivo é uma virtualidade presente e sempre prestes
a se atualizar novamente na sociedade que se acredita mais evo -
luída. Todas as sociedades do mundo se comunicam numa es -
pé cie de mol de a par tir de onde cada uma saiu a pro cu rar o seu
des ti no. O que di fe ren cia um modo de vida tri bal de uma vida ci -
vilizada são as camadas de conhecimento acumuladas. Supon -
do que, se pu dés se mos re mo ver es sas ca ma das uma a uma,
iría mos en con trar o nú cleo co mum da vida com to das as ten dên -
cias evolutivas concentradas.
A função fabuladora é o mecanismo corretivo da vida inteli -
gente, e sua natureza é instintiva. Uma espécie de razão, subja -
cente à razão que raciocina, comanda a vida, inclusive fazendo
que a inteligência produza o seu próprio antídoto. Bergson fala
de uma “personalidade instintiva, sonambúlica”14 que vi gia des -
de den tro a pró pria vida. Do pon to de vis ta in di vi du al isto é fa cil -
mente verificável em situações de perigo, aquilo que chamamos
de instinto de sobrevivência. Do ponto de vista coletivo, esse
mecanismo é a função fabuladora da reli gião e ganhará a for ma
de alguma entidade protetora do grupo, um deus “que proibirá,
ameaçará, reprimirá”15 os dissidentes que ameaçam a coesão
social pela força individual de sua iniciativa, pelo poder inteligen -
te e criativo com que a natureza o dotou. A natureza, sabendo do
risco que significaria destinar o élan vital à liberdade humana,
através da máxima evolução da vida inteligente, essencialmente
in ven ti va, não de i xou que se apa gas se de todo o re sí duo de psi -
quismo instintivo. Acreditar numa entidade sobrenatural é, pois,
uma deliberação irracional da inteligência, que se explica pelo
modo interpenetrado como a natureza configura a vida: a inteli -
gên cia as su me a re gên cia da vida eclip san do, mas não eli mi -
nando o domínio instintivo. Sob todos os aspectos evolutivos a
vida se ria in viá vel sem a for ça do ins tin to. “A re li gião é pois uma
reação defensiva da natureza contra o poder dissolvente da inte -
li gên cia”.16 Essa primeira defi nição da reli gião refere-se à dis so -

lu ção, que é o primeiro perigo que a inteligência significa para a
vida, nes se caso o ris co é diretamente social.
O segundo perigo é a depres são. Nes se caso a ques tão é
mais individual, e apenas indiretamente social, pois se refe re ao
medo da mor te. O ho mem é o úni co ani mal que sabe que vai
morrer. Quando a consciência chega no homem, encontrando
sua forma terminal, o intervalo que abre a possibilidade da esco -
lha se am plia ao pon to de a pró pria es co lha cor rer o ris co de es -
tacionar num estado de hesitação paralisante. Hesitar é uma
grande vantagem do ser inteligente, mas só hesita quem tem
medo de er rar e, no fim das con tas, de mor rer. A he si ta ção co -
nhe ce mu i to bem o medo, e mu i tas ve zes se con fun de com ele.
A fal ta to tal de medo é fal ta de in te li gên cia, a pre sen ça to tal é a
inteligência que se atropela por seus próprios obstáculos. O ca -
mi nho se abre mais ou me nos no meio, nem tan to a fal ta to tal,
nem tan to a pre sen ça, um tan to de he si ta ção, mas tam bém bas -
tan te ris co a cor rer, pois a evo lu ção cri a do ra da vida en vol ve
quase sempre risco a correr. Portanto, é preciso também uma
dose de loucura. A inteligência instintivamente (ou o instinto inte -
li gen te men te, é só uma ques tão de pon to de vis ta) re a ge con tra
o medo que deprime a vida, prejudicando primeiramente o indi -
ví duo e de po is a so ci e da de, que não avan ça no pon to onde esse
in di ví duo pa rou por medo de ar ris car. Como se a vida es tag nas -
se na me di da em que per de o ape go de si mes ma. A de pres são,
con se quên cia do intervalo entre a representação do ato e sua
realização, consequência do medo que a representação do ato
pode significar, tem como característica a perda do apego à
vida, fundamental para a expansão do élan vital.
O medo da mor te vai ins ti gar a fun ção fa bu la do ra da re li -
gião a cri ar a ima gem de uma vida de po is da mor te. Isso é um
exem plo de como a re li gião age no ris co da de pres são. No va -
men te a in te li gên cia afir ma algo para além de sua teia de ra ci o cí -
nios geométricos. Ou seja, novamente o que age pela inteligên -
cia é o ins tin to na co ex ten são da vida. O ins tin to é o que no fun do
da matéria organizada sustenta a vida, uma espécie de piloto au -
tomático. Os animais em geral estão eternamente colados em
seu pre sen te, não exis tin do para eles o fu tu ro: isso sig ni fi ca que
os animais em geral estão eternamente no movimento da vida.
Pelo fato de que po dem pro je tar suas vi das num fu tu ro, que po -
de rá ou não se re a li zar, os hu ma nos ad qui rem a inú til cons ciên -
cia da mor te: tal aca ba pro vo can do o ris co de in ter rup ções no
mo vi men to da vida. “Se o im pul so de vida des vi ar to dos os de -
mais seres vivos da representação da morte, o pensamento da
morte deverá retardar no homem o movimento da vida”.17 A hu -
ma ni da de se tor na pe sa da pelo fato de que sabe re pre sen tar a
própria morte e, dessa forma, retarda o seu próprio movimento.
Cadernos IHU ideias 13
17 DF, p. 108.
A ima gem de uma vida de po is da mor te res pon de à ne ces si da de
de con ti nu a ção do mo vi men to da vida, como se a ima gem pu -
desse substituir o obstáculo que significa a ideia da morte. A
imaginação fabuladora da religião primitiva deve ser tão podero -
sa a ponto de construir uma realidade que permita o movimento
con ti nu a do da vida, uma re a li da de em que a mor te de seus in di -
ví du os seja uma eta pa da vida. O cul to dos mor tos e a pre ser va -
ção da memória do morto expressam o desejo da comunidade
de con ti nu ar a vida de quem foi, bem como de en co ra jar a vida
de quem fica. Novamente a inteligência através de recursos reli -
gi o sos age a fa vor da vida; no va men te ela pro duz o seu pró prio
antídoto. “Encarada desse segundo ponto de vista a religião é
uma reação defensiva da natureza contra a representação, pela
in te li gên cia, da ine vi ta bi li da de da mor te”.18 A ra zão deve ser fa -
vo rá vel à vida, mas nem sem pre ela é obra da in te li gên cia, e mu i -
tas ve zes ela admite o absurdo. A razão do élan vital é soberana
e deve, explicitamente pela inteligência e implicitamente pelo
instinto, orientar o psiquismo individual e coletivo para a máxima
expansão da energia criadora da vida.
De seu pon to de vis ta evo lu ci o nis ta e vi ta lis ta, Berg son
des co bre que a re li gião está no âm bi to da ação, é uma in ter -
ven ção prag má ti ca da vida. Di fe ren te men te da fi lo so fia, por
exem plo, que é uma ati vi da de es sen ci al men te es pe cu la ti va, ou
seja, teó ri ca. Na mes ma di re ção prag má ti ca se des do bra a mo -
ral, que tam bém terá como fun ção a co e são so ci al, ou seja,
sem pre pre te rir o in di vi du al pelo co le ti vo. Aliás, não é pos sí vel
es tu dar a re li gião des vin cu la da da mo ral, pelo me nos na pers -
pec ti va evo lu ci o nis ta.
4 A for ça do há bi to – obrigação moral
Uma sociedade moldada pela natureza é um organismo fe -
cha do: não en tra e nem sai ne nhum ele men to que pu des se pro -
vocar uma novidade. Bergson compara a sociedade fechada a
uma família bizarra e cheia de manias, com tendência a produzir
superstições.19 Nes sa fa mí lia a or dem é co man da da pela for ça
do hábito. Essa for ça tem duas carac terísticas: a repe tição e o
exagero; ela tende a se espalhar superficialmente. Alguém da fa -
mília inventa algo diferente num dia inspirado, mas uma coisa
sem importância e sem explicação. Um passeio no domingo. Aí,
no pró xi mo do min go in ven tam de ir de novo, em se gui da de
novo, e aqui lo vira fa cil men te um há bi to que pode ge rar in clu si ve
su pers ti ções: ‘se não for mos ao pas se io do do min go algo de
ruim pode nos acon te cer’. Di ga mos que toda fa mí lia ten de à bi -
zarri ce. Dificilmente alguém de uma famí lia passa sem culti var al -
14 André Bray ner de Fa ri as
18 DF, p. 109.
19 Cf. DF, p. 114.
guma ma nia. Embo ra al gu mas exa ge rem mais que ou tras. A fa -
mí lia bi zar ra pro duz com fa ci li da de o es te reó ti po, que é quan do
uma ima gem se re pe te tan to que cris ta li za e pas sa a cor res pon -
der à pes soa, que subs ti tui seu mo vi men to ori gi nal, sua for ça
cri a ti va e in ter na, sua gra ça, por um me ca nis mo pro du zi do de
fora para den tro, a for ça do há bi to. Aliás, é por sua ten dên cia
ca ri ca ta que uma per so na gem de fa mí lia se tor na ri sí vel.20 Essa
fa mí lia bi zar ra, ou a fa mí lia de ma ne i ra ge ral, é o pro tó ti po da
so ci e da de fe cha da.
A mo ral que se de sen vol ve aí é a do há bi to, o cos tu me, e
seu objetivo profundo é manter o laço social, em detrimento da
expansão individual. Sua característica principal é que ela age
de fora para den tro, uma for ça de co a ção, uma pres são – obriga -
ção mo ral. Todo esforço é para manter o organismo inteiro. O
hábito é uma resistên cia ao élan criador, que se manifesta sem -
pre individualmente. Uma iniciativa individual compete sempre
com a for ça do há bi to, e em ge ral não re sis te. “Uma for ça de
sen ti do cons tan te, que está para a alma como o peso para o cor -
po, assegura a coesão do grupo, inclinando a um mesmo senti -
do as vontades individuais. Assim é a obrigação moral”.21 O élan
vital não desperdiça sua nobre energia na coletividade, pois ela
só é bem aproveitada individualmente. Caberá à sociedade ter
ou não ter sabedoria para se aproveitar de alguma individualida -
de cri a ti va que, a sua re ve lia, pode se ma ni fes tar, mas sem pre na
con tra mão da força moral.
A guerra é o destino inevitável das sociedades fechadas:
cada grupo como um organismo inteiro e fechado vai tender a
cuidar de suas fron teiras geográficas e também identitárias, e
isso significa o conflito com o grupo vizinho. A postura da defesa
e do ata que, um es ta do la ten te de guer ra, será a nor ma. Inte res -
sante é pensar o quão primitivas são ainda as sociedades civili -
za das. As guer ras, tal vez mais do que qual quer ou tra ca rac te rís -
tica social, indicam a falsidade dessa dife renciação que tão facil -
mente fazemos entre o primitivo e o evoluído: a sociedade
fechada vai sempre tender ao conflito, seja com arco e flecha,
seja com mísseis teleguiados.
Cadernos IHU ideias 15
20 A ca ri ca tu ra é ana li sa da em O riso como um dos mo ti vos do efe i to cô mi co. Uma
pes soa se tor na ca ri ca ta quan do seu cor po cede à pres são do há bi to, trans for -
man do pou co a pou co a le ve za na tu ral do ges to em ações au to má ti cas. E toda
vez que um au to ma tis mo as su me o lu gar do mo vi men to na tu ral da vida, que
deve ser leve e gra ci o so, o re sul ta do é o riso. Car li tos (per so na gem do Cha -
plin), em Tem pos mo der nos, é o ver da de i ro pa ra dig ma des se efe i to cô mi co:
sua vida se trans for ma num au to ma tis mo ab so lu to de vi do ao tra ba lho ab sur da -
men te exa us ti vo e mo nó to no da fá bri ca, a pon to de ele ser in ter na do. Toda vez
que ele re pe te o ges to me câ ni co, te mos von ta de de rir. Cf. BERGSON, H. O riso –
ensaio sobre a significação da comicidade. São Pa u lo: Mar tins Fon tes, 2001,
so bre tu do o pri me i ro ca pí tu lo.
21 DF, p. 221.
O modo como o con jun to dos cos tu mes de uma so ci e da de
se mantém e se amplia é uma espécie de propagação superficial
e sem pre quan ti ta ti va. A disciplina social, a educação adequado -
ra, é exatamente isto: levar adiante a tradição dos costumes ad -
qui ri dos, am pliá-los, va lo ri zá-los cada vez mais, até que ele per -
maneça distante o suficiente de sua origem infrar racional ou
quase instintiva. E a explicação do costume, se ainda for neces -
sá rio, mas o nor mal é que não seja, aca ba sen do este: ‘é as sim
porque sem pre foi as sim, e continuará sendo’. Percebemos,
dessa for ma, como a reli gião estática está a serviço da socieda -
de fechada.
Uma so ci e da de fe cha da só pode vi ver, re sis tir a cer ta ação
dis sol ven te da in te li gên cia, con ser var e co mu ni car a cada
um de seus mem bros a con fi an ça in dis pen sá vel, me di an te
uma religião surgida da função fabuladora. Essa religião, a
que cha ma mos es tá ti ca, e essa obri ga ção, que con sis te
numa pres são, são cons ti tu ti vas da so ci e da de fe cha da.22
Mo ral e re li gião têm, des sa for ma, uma ori gem e uma fun -
ção co mum. O mé to do de propagação e de per pe tu a ção é a re -
petição ritualística. Nada de propriamente novo acontece. Aquilo que já foi dado na origem deve ser repetido exaustivamente, deve ser exa ge ra do, deve persistir, sempre com a intenção de manter o laço social, a coesão, a autoidentificação do grupo. A mudança aqui é quantitativa, “movendo-se, sem sair do lugar, acrescenta-se e amplia-se sem cessar”.23 Não há esforço inventivo no conjunto da sociedade fechada, nada se aprofundando verticalmente, apenas se propagando superficialmente pela força do hábito. 

O esforço individual 
não é a tendência predominante da sociedade fechada.
O esforço individual é de outra natureza, 
uma espécie de contracorrente do hábito, 
e será necessariamente crítico da moral natural.

A sociedade é a estabilidade material da espécie. O élan vital, cuja natureza é espiritual, atraves sa a matéria forçando permanentemente sua resistência natural. A espécie, no longo e paciente processo evolutivo da vida, representa algo como um re demoinho no trajeto do élan vital, na medida em que canaliza seu esforço não para a invenção de uma nova espécie, que se ria
a continuação do fluxo criador, mas para sua perpetuação. 

Não que o élan fique parado, pois ele é a própria energia que mo vi -
menta a vida, mas ele deseja continuar, se expandir, inventar
constantemente suas formas, e não exatamente parar em uma
for ma específica, uma espécie. O destino do élan é chegar ao
homem, onde a consciência se converte em liberdade e a vida
desenvolve uma capacidade criadora, uma natureza naturante.
Mas a sociedade fechada cria obstáculos, atrapalha o fluxo do
élan. Nela intervém a força do instinto: a religião primitiva, que
constitui moralmente a sociedade, é uma ação movida por um
psiquismo infrarracional, de controle.

 O élan vital,
 abafado pela conformação social, 
procura uma brecha para continuar o seu destino criador.
 Essa brecha é o indivíduo, força de abertura e de
expansão da vida.

5 Aspiração – a moral criadora
Não é pos sí vel se pa rar cla ra e dis tin ta men te o aber to e o fe -
cha do no cam po da mo ral e da re li gião, da mesma forma como
não é possível separar totalmente a inteligência e o instinto. As tendências da vida encontram-se sempre interpenetradas. A moral criadora é uma aspiração individual que, no entanto, se manifesta no corpo fechado da sociedade. 

A aspiração criadora é
algo como uma atividade vulcânica no seio da sociedade, mas a
sua energia não é aquela que move a coletividade: a mas sa indistinta do organismo social esconde pontos de erupção que são indivíduos de natureza mais espiritual do que material. Novamente a teoria da tendência: certos corpos se organizaram de tal forma maleável que a energia as cendente da vida ne les encontra mais facilidade de circular. Esses pontos individuais concentram a grande expectativa evolutiva do élan vital, a manifestação criadora da vida como a própria libertação espiritual. Algo como
uma as cen são quase divina. Essa maniestação é rara e o exemplo de que se vale Bergson é a vida mística. 

A intuição é um psiquismo que provoca uma emoção religiosa de outra espécie que a da religião fabuladora. A emoção dos grandes místicos é uma
força que não exer ce pressão sobre a vida, ela não pretende definir a sociedade, mas justamente provocar sua abertura. Não há objetivo social e também não há propriamente um objetivo moral.
É algo que tem o poder de arrastar a humanidade inteira por alguma espécie de contaminação inspiradora da vida. 

A sociedade aberta seria a humanidade. 

O amor místico
 não está a serviço de uma sociedade particular, 
é o amor da humanidade inteira.

Como se o destino evolutivo da vida fosse a força criadora do amor. Mas essa força não se conhece assim tão facilmente quanto falamos dela. 

O amor 
é o maior mistério da vida 
e jamais saberemos expressá-lo 
pela linguagem que a inteligência 
sempre recupera para ela, 
imprimindo a sua natureza racional.
 Talvez por isso façamos poesia. A verdade é que a filosofia com sua natureza intelectualista não consegue fundamentar racionalmente a moral sem cometer algum dano reducionista. A filosofia “procura o motivo de cada uma das prescrições, isto é, seu conteúdo intelectual; e como é sistemática, crê que o problema é reduzir todos os motivos morais a um único”.24 

 Mas é preciso distinguir a natureza das motivações. Há uma região da moral que a razão não alcança simplesmente porque lhe é anterior e corresponde à dinâmica fundamental criadora da própria vida e da natureza.

Há uma moral estática, que existe de fato, em dado momento, em dada sociedade. Ela fixou-se nos costumes,nas ideias, nas instituições; seu caráter de obrigatoriedade reduz-se, em última análise, à exigência pela natureza, da vida em comum. Há, por outro lado, uma moral dinâmica,que é impulso, e que se liga à vida em geral, criadora da natureza que criou a exigência social. A primeira obrigação, na medida em que pressão, é infrarracional. A segunda, na medida em que aspiração, é suprarracional. Mas sobrevém a inteligência.25

A moral dinâmica coincide com a própria energia do impulso vital. Ela é incessantemente criadora, a própria fonte da criação. A razão não pode conter uma força que a ultrapassa e a antecede, e no fim das contas, responde pela própria vida racional.
É inevitável o reducionismo da inteligência racional. Como se o élan vital encontrasse o seu destino na liberdade humana, encontrando-se a si mesmo. Tudo o que se procura va não era senão uma consciência capaz de se criar constantemente. 

“O espírito 
sendo precisamente uma força 
que pode tirar de si mesma mais do que contém, 
de volver mais do que recebe,
 dar mais do que possui”,
26 conforme a definição presente em A alma e o corpo. Essa moral dinâmica, o amor místico, a liberdade, o espírito capaz de se criar a si mesmo, enfim, a força imprevisível e essencialmente indeterminável da vida em geral coincide com a própria duração real.

O exemplo mais elevado dessa energia espiritual é a vida mística, mas ela está presente, de uma maneira geral, nas criações individuais. É pela via da intuição que esse transbordamento do espírito chega à consciência. 

“Se o indivíduo 
tem plena consciência disso, 
se a franja de intuição que envolve 
sua inteligência se amplia o suficiente 
para aplicar-se a todo o seu objeto,é a vida mística”.27

Bergson 
dá vários exemplos degrandes místicos, 
como São Francisco de Assis.
 Os místicos têm o po der de abrir ca minhos e arrastar multidões, por uma for ça que não é a da pressão, mas justamente essa intuição ampliada e que tende a se espalhar vencendo os obstáculos.

 A intuição ampliada desobstrui 
o caminho do élan vital.
 A emoção artística também é uma forma de acesso a essa energia. As criações artísticas, algumas mais que outras, têm, em geral, essa capacida de de elevar a vida e de contaminar as individualida des na medida em
que a obra de arte é o regis tro de uma intuição am pliada, ex pres -
são da mobilidade essencial do real. 

A obra 
é uma espécie de canal de comunicação 
da intuição individual do artista, 
como um poderoso poro que se abre 
no imenso corpo fechado da sociedade. 
A questão é que esse acesso se fecha logo que se abre. A tendência social é sempre mais forte, e muitas vezes ocorre que uma novidade criativa pode não resistir por muito tempo à pressão social. Por exemplo, quando uma nova tendência artística com um grande potencial de transformação vira um modismo sem grandes consequências. Mas é graças a esses momentos
de abertura que o indivíduo pode ventilar e mover sua vida,experimentando aquilo que de mais essencial a natureza lhe reservou: a liberdade de criar constantemente sua própria vida.

6 Conclusão
A ética é para Bergson o desdobramento evolutivo da vida.
E na medida em que vida significa fundamentalmente a transmissão incessante de seu impulso, o sentido ético da vida é a desobstrução das formas de viver.

 A moral fechada é uma demanda da natureza, a força coextensiva quase instintiva da vida, que estabiliza a expansão do élan numa conformação social, mas que nem por isso deixa de ser favorável à vida: a sociedade é
uma necessidade, um cuidado da natureza. Mas não seríamos muito diferentes de um formigueiro ou de uma colmeia. O élan vital não chegou até o homem simplesmente para organizar as sociedades. 

A civilização, a cultura, as grandes criações do espírito, as obras artísticas, os testemunhos religiosos, as ideias filosóficas, as descobertas científicas indicam que o destino da vida é a abertura, a elevação espiritual. Não precisaríamos demorar tanto para entender a necessidade vital do ris co, e toda grande criação implica em correr risco. 

A história da humanidade poderia ser contada pelas punições sofridas por aquelas individualidades geniais que em cada época encarnaram a força do risco e inventaram novas formas de viver, muitas vezes pelo preço de
suas próprias vidas. Parece que não há ou tra saída nesse tempo
onde tudo parece tão controlado que nenhuma grande criação
representa mais perigo algum: a vida é sem pre o belo ris co de
sua própria liberdade de criação.

Cadernos IHU ideias 19

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Pablo Picasso

 Fonte:
http://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/ideias/161cadernosihuideias.pdf
 

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